quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ridículo amor

O melhor do namoro, claro, é o ridículo. Mas o Waldecyr passara dos limites. Chegara a um extremo do ridículo. Chegara a uma apoteose do ridículo. Ou como você chamaria ter que imitar um cachorro para não descobrirem que era ele no quintal, louco de ciúme, embaixo da janela da namorada, numa noite de julho? O Waldecyr exagerara. O Waldecyr, que Sharlenne chamava de Ipsilone porque aquela fora a primeira coisa que ele lhe dissera:
- Ipsilone
- Hein?
- Waldecyr. É com ipsilone.
- Ah.
Ela estava preenchendo um formulário para dar entada no seu pedido, algo a ver com um crediário, não interessa, e precisava de todos o seus dados.
- Estado civil?
- Solteiríssimo.
Daí pra pergunta " Que horas tu larga?" e o convite para tomarem um chope foi um pulo , e do chope para o namoro firme foi outro. Sharlenne ouvia cantadas e convites o dia inteiro, mas não era dessas, mas simpatizara com o Waldecyr. O Waldecyr não parecia ser como os outros. E o ipsilone, sei lá. O nome dele lhe dava uma certa segurança.
- Desliga você
-Não, desliga você
- Você.
- Você.
- Então vamos desligar juntos.
- Tá. Conta até três
- Um...Dois...Dois e meio...
Ridículo porque não era você. Ou era você, e só agora, visto desta distância, ficou ridículo. Porque na hora não era não. Na hora, nem os apelidos secretos que vocês tinhas um para o outro. Lembra? Eram ridículos. Ipsilone. Sharllenuca. Walzanzão. Sharussuzuca. Congonha (Congonha!)
Mimosa. Purupupuca.
Não havia coisa melhor do que passar tardes inteiras num sofá, olho no olho dizendo, dizendo:
- A dondozeira ama o dondozeiro?
- Ama
- Mas o dondozeiro ama a dondozeira muito mais que a dondozeira ama o dondozeiro.
- Na -na- não. A dondozeira ama o dondozeiro mais do que, etc.
E, entretanto o diálogo, longos beijos, profundos beijos, beijos mais do que de lingua, beijos de amígdalas, beijos catetéricos. Tardes inteiras.
Confesse: ridículo só porque nunca mais. Depois do ridículo, o melhor dos namoros são as brigas. Aconteceu com o Ipsilone e a Sharlenne. Brigaram e brigaram feio. Várias vezes.
Aí ela ligava para ele, e não dizia nada, e ele:
- Eu sei que é você. Está me controlando, é? O que é? Se arrependeu?
Ou ele ligava para ela, e assim que ela atendia, desligava.
Quem diz que nunca, como quem não quer nada, arquitetou um encontro de casal com a ex só para ver e ignorar, ou para dar um abano amistoso querendo dizer que ela ou ele significa tão pouco que poder até ser amigos, está mentindo. Está mentindo.
E o melhor das brigas são as reconciliações. Beijos ainda mais profundos, apelidos ainda mais lamentáveis, vistos de longe. A gente brigava mesmo era para se reconciliar depois, lembra?
Oito entre dez casais namorados transam pela primeira vez fazendo as pazes. O IBGE tem estatísticas.
Na última briga deles, Sharlenne conseguiu fazer chegar aos ouvidos do Waldecyr que estava saindo com outro. Um colega de trabalho.
E o Waldecyr fez a coisa mais sensata, o que qualquer um de nós faria. Passou a espionar Sharlenne escondido. Começou a faltar suas aulas de especialização em ciências contábeis às 6 para ficar atrás de uma carrocinha de pipoca, vendo se a Sharlenne saía do trabalho com outro.
Rondava a casa de Sharlenne. Uma noite, uma sexta feira, pensou ver a Sharlenne entrar em casa com um homem - e não viu o homem sair da casa. Quatro da manã e o Waldecyr abraçado a uma árvore, tremendo de frio, de olho fixo na porta. Todas as luzes da casa apagadas e o Waldecyr pensando, quase chorando: Não pode ser, não pode ser. Como que o seu Amorim e a dona Laurita deixam? Eu. Eles me botavam na rua às onze e meia. O outro, deixam dormir com a Sharlenne na sua própria cama. Porque Sharlenne só podia estar na cama com outro.
Aquela hora, não poderiam estar mais no sofá, ela chamado ele de Dondozeiro. Ou podia? Não podia. Podia mas não podia, o Waldecyr não se aguentou, pulou a cerca, se agachou sob a janela de Sharlenne, bateu o joelho em alguma coisa, gritou, e quando o seu Amorim apareceu na porta dos fundos e perguntou " Quem está aí?" tentou imitar um cachorro. Não convenceu ninguém, claro, tanto que, dez minutos depois, estava sentando na mesa da cozinha, tiritanto, as calças sujas de barro, tomando café com a dona Laurita com uma das mãos, e o outro braço em volta da cintura da Sharlenne. Sim, reconciliados, abraçados e emocionados. Pois Sharlenne se enternecera com ciúmes do seu ipsilonezinho. Não havia nenhum outro. Ela fora à farmácia com o pai, o homem que ele a vira entrar na casa com ela era o seu Amorim, bobo! Mas o que eu realmente conquistara Sharlenne foi o ganido do Waldecyr, tentando imitar um cachorro. Só um homem muito apaixonado faria um ridículo daqueles. Em dois meses, estavam casados.
Até hoje a Sharlenne conta a história do Waldecyr ganindo no quintal, por mais que ela peça para ela não contar. As crianças já cansaram de ouvir a história, os amigos ouvem um pouco sem jeito. E a Sharlenne e o Waldecyr não se tratam mais por apelidos. Quando fala nele, ela diz " Esse aí". Mas que foi bom, isso foi.

Um comentário:

Rubem Rocha disse...

como tu escreve uma coisa tão boa e ninguém comenta? isso sim é escrever! Tem começo meio e fim e no meio disso tudo tem quase uma poeasia. a narrativa prende. vai escrever mais. não seja preguiçosa.