quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ridículo amor

O melhor do namoro, claro, é o ridículo. Mas o Waldecyr passara dos limites. Chegara a um extremo do ridículo. Chegara a uma apoteose do ridículo. Ou como você chamaria ter que imitar um cachorro para não descobrirem que era ele no quintal, louco de ciúme, embaixo da janela da namorada, numa noite de julho? O Waldecyr exagerara. O Waldecyr, que Sharlenne chamava de Ipsilone porque aquela fora a primeira coisa que ele lhe dissera:
- Ipsilone
- Hein?
- Waldecyr. É com ipsilone.
- Ah.
Ela estava preenchendo um formulário para dar entada no seu pedido, algo a ver com um crediário, não interessa, e precisava de todos o seus dados.
- Estado civil?
- Solteiríssimo.
Daí pra pergunta " Que horas tu larga?" e o convite para tomarem um chope foi um pulo , e do chope para o namoro firme foi outro. Sharlenne ouvia cantadas e convites o dia inteiro, mas não era dessas, mas simpatizara com o Waldecyr. O Waldecyr não parecia ser como os outros. E o ipsilone, sei lá. O nome dele lhe dava uma certa segurança.
- Desliga você
-Não, desliga você
- Você.
- Você.
- Então vamos desligar juntos.
- Tá. Conta até três
- Um...Dois...Dois e meio...
Ridículo porque não era você. Ou era você, e só agora, visto desta distância, ficou ridículo. Porque na hora não era não. Na hora, nem os apelidos secretos que vocês tinhas um para o outro. Lembra? Eram ridículos. Ipsilone. Sharllenuca. Walzanzão. Sharussuzuca. Congonha (Congonha!)
Mimosa. Purupupuca.
Não havia coisa melhor do que passar tardes inteiras num sofá, olho no olho dizendo, dizendo:
- A dondozeira ama o dondozeiro?
- Ama
- Mas o dondozeiro ama a dondozeira muito mais que a dondozeira ama o dondozeiro.
- Na -na- não. A dondozeira ama o dondozeiro mais do que, etc.
E, entretanto o diálogo, longos beijos, profundos beijos, beijos mais do que de lingua, beijos de amígdalas, beijos catetéricos. Tardes inteiras.
Confesse: ridículo só porque nunca mais. Depois do ridículo, o melhor dos namoros são as brigas. Aconteceu com o Ipsilone e a Sharlenne. Brigaram e brigaram feio. Várias vezes.
Aí ela ligava para ele, e não dizia nada, e ele:
- Eu sei que é você. Está me controlando, é? O que é? Se arrependeu?
Ou ele ligava para ela, e assim que ela atendia, desligava.
Quem diz que nunca, como quem não quer nada, arquitetou um encontro de casal com a ex só para ver e ignorar, ou para dar um abano amistoso querendo dizer que ela ou ele significa tão pouco que poder até ser amigos, está mentindo. Está mentindo.
E o melhor das brigas são as reconciliações. Beijos ainda mais profundos, apelidos ainda mais lamentáveis, vistos de longe. A gente brigava mesmo era para se reconciliar depois, lembra?
Oito entre dez casais namorados transam pela primeira vez fazendo as pazes. O IBGE tem estatísticas.
Na última briga deles, Sharlenne conseguiu fazer chegar aos ouvidos do Waldecyr que estava saindo com outro. Um colega de trabalho.
E o Waldecyr fez a coisa mais sensata, o que qualquer um de nós faria. Passou a espionar Sharlenne escondido. Começou a faltar suas aulas de especialização em ciências contábeis às 6 para ficar atrás de uma carrocinha de pipoca, vendo se a Sharlenne saía do trabalho com outro.
Rondava a casa de Sharlenne. Uma noite, uma sexta feira, pensou ver a Sharlenne entrar em casa com um homem - e não viu o homem sair da casa. Quatro da manã e o Waldecyr abraçado a uma árvore, tremendo de frio, de olho fixo na porta. Todas as luzes da casa apagadas e o Waldecyr pensando, quase chorando: Não pode ser, não pode ser. Como que o seu Amorim e a dona Laurita deixam? Eu. Eles me botavam na rua às onze e meia. O outro, deixam dormir com a Sharlenne na sua própria cama. Porque Sharlenne só podia estar na cama com outro.
Aquela hora, não poderiam estar mais no sofá, ela chamado ele de Dondozeiro. Ou podia? Não podia. Podia mas não podia, o Waldecyr não se aguentou, pulou a cerca, se agachou sob a janela de Sharlenne, bateu o joelho em alguma coisa, gritou, e quando o seu Amorim apareceu na porta dos fundos e perguntou " Quem está aí?" tentou imitar um cachorro. Não convenceu ninguém, claro, tanto que, dez minutos depois, estava sentando na mesa da cozinha, tiritanto, as calças sujas de barro, tomando café com a dona Laurita com uma das mãos, e o outro braço em volta da cintura da Sharlenne. Sim, reconciliados, abraçados e emocionados. Pois Sharlenne se enternecera com ciúmes do seu ipsilonezinho. Não havia nenhum outro. Ela fora à farmácia com o pai, o homem que ele a vira entrar na casa com ela era o seu Amorim, bobo! Mas o que eu realmente conquistara Sharlenne foi o ganido do Waldecyr, tentando imitar um cachorro. Só um homem muito apaixonado faria um ridículo daqueles. Em dois meses, estavam casados.
Até hoje a Sharlenne conta a história do Waldecyr ganindo no quintal, por mais que ela peça para ela não contar. As crianças já cansaram de ouvir a história, os amigos ouvem um pouco sem jeito. E a Sharlenne e o Waldecyr não se tratam mais por apelidos. Quando fala nele, ela diz " Esse aí". Mas que foi bom, isso foi.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Labirinto de teclas

Cai a energia. Quando volta, descubro que o relógio do meu som está piscando em um eterno meio-dia. Abro o manual de instruções, em espanhol, inglês. francês, italiano e japonês. Aperto as teclas indicadas. O relógio continua piscando, mas surge um sinal vermelho na tela. Horrorizo-me. Minha experiência com o vídeo diz que, quando surge algum sinal desconhecido, é melhor chorar.
Atiro-me em todas as teclas do aparelho. Entra na rádio FM.
Sutitamente, o relógio pula para as 9 da noite. São 8. Aceito o destino. Se a energia não cair novamente até o horário de verão, tudo dará certo.
Diante de certos aparelhos modernos, sinto- me como uma Pithecanthopus pré-eretus. Todos possuem mil funcões. A maior parte do tempo, consigo usar apenas uma. A mais óbvia, é claro!
Outro dia, uma amiga procurou salvação, justo comigo. Apareceu com um pacote de manuais e vários saquinhos plásticos contendo pazinhas dos mais diversos formatos.
▬ Quero que você me ajude a descobrir como usar as pazinhas.
Peguei na primeira. Era parecida com a do meu mixer, a única que conhecia.
▬ Esta é para bater massas ▬ expliquei sabiamente
Resolvemos fazer a experiência. Corremos para o livro de receitas, escolhemos um pão-de-ló sofisticado. (Por que facilitas, afinal?) Botamos os ovos, a farinha, o açúcar e o leite. Ai encaixamos as pazinhas. Fechamos o mixer e apertamos o botão indicado.
Silêncio absoluto. Apertamos de novo. Mais silêncio.
▬ A tampa está mal encaixada. Se não estiver no lugar certo, não funciona ▬ deduzi.
Torcemos a tampa de todas as maneiras. A cada torcida, revirávamos juntos, a cintura, os braços e a cabeça. Meu queixo encostou na costela. Ao me refazer, apertei a toda.
Zummmmmm!
▬ Tem uma fumacinha saindo da massa! ▬ gritou a jovem. Tirei o fio da tomada. Abri o mixer. O cano da painha estava pegando fogo. A razão: mau encaixe. A farinha continuava farinha, as gemeas, gemas, o açúcar...enfim, uma tragédia. Nosso erro: a pazinha devia ter sido colocada antes dos ingredientes. O esforço para girar quase detonara o aparelho. Foi preciso tirar farinha, gemas, etc., com todo cuidado, reencaixar a pazinha, botar tudo de novo e ...zummmmmmm!
Mais tarde, para abrir o bolo foi preciso um martelo.
Das outras pazinhas, desistimos.
E a televisão? Hoje, um controle remoto tem tantos comandos quanto um helicóptero.
▬ A imagem está vermelha
▬ Deixa assim, eu lhe imploro!
▬ Bobagem.
Meu visitante aperta algumas teclas do controle. A tela fica preta. Outra, e a imagem se torna estática. Ele começa a apertar todas, enfurecido, tentando deslindar o enigma de alguns símbolos colocados sobre cada uma. Na TV, os atores ficavam azuis, verdes, roxos. Suspiro e abro um livro.
Terríveis são as agendas eletrônicas. Menores que um maço de cigarro, podem armazenar toda uma vida. Um comando, ela arquiva todos os telefones possíveis. Outro, ele organiza a agenda para os próximos meses. Mais um, para um arquivo secreto ( tão secreto que jamais consegui acessar). Podem levar qualquer um à loucura. Aconteceu com um amigo meu, diretor de televisão. Estava mostrando a agenda, recente aquisição, para uma produtora. Nela, todos os telefones dos astros e estrelas brasileiros. A amiga, entusiasmada:
▬ Deixa ver?
Apertou duas inocentes teclinhas e zap! Tudo se apagou para sempre. Nunca conseguiram recuperar. O diretor a produtora não se falam até hoje.
Pior foi o cunhado de um amigo meu. Pegou o controle remoto da televisão e discou pra mãe. Ficoi estarrecido , sem entender por que os canais pulavam de um para o outro e a mãe não atendia.
É o que eu digo: tenho saudades do tempo em que todos os aparelhos eram simplesm como um liquidificador. Bastava apertar uma tecla, apenas uma, e tomava a vitamina.
Sem a sensação incômoda de estar perdendo alguma coisa.
Ou de desconhecer instruções e teclas que facilitariam minha vida!


domingo, 6 de junho de 2010

Irmãos*

▬ De vem em quando eu penso neles.
▬ Quem?
▬ Nos espermatozóides.
▬ De vem quando você pensa que somos seus espermatozóides?
▬ Não nos meus, não. Nos do meu pai
▬ Você tá bêbado.
▬ Na noite que eu fui concebido ▬ suponho que tenha sido uma noite ▬ eu era um entre milhões de espermatozóides. Mas só eu cheguei no óvulo da minha mãe. Ou será bilhões?
▬ Acho que é óvulo mesmo.
▬ Não. Os espermatozóides. É milhões ou bilhões?
▬ Ah...não sei.
▬ Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isto é o mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóides junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
▬ É.
▬ Você acha mesmo?
▬ Acho.
▬ Poderia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
▬ Amendoim?
▬ Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?
▬ É como você diz. A gratuidade da coisa.
▬ Não, não. Isso que estou bebendo.
▬ É, ahn, uísque.
▬ Uísque. Pois não. Aí está.
▬ Ô Moacyr, vê outro aqui. O rapaz tá precisando.
▬ Um brinde!
▬ Um brinde.
▬ A eles!
▬ Quem?
▬ Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo da mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não viveram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
▬ Aos meus irmãos!
Meus irmãos, você não estava lá.
▬ Aos seus irmãos!
▬ Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
▬ Salve.
▬ Agora me diga uma coisa.
▬ Duas. Digo duas.
▬ Cada espermatozóide é uma pessoa diferente, certo?
Quer dizer. Em outras palavras. Se o outro espermatozóide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
▬ Depende.
▬ Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Poderia ser uma mulher, certo?
▬ Nõa vamos exagerar.
▬ Então, imagine o seguinte. Pense bem. Amendoim.
▬ Amendoim. Estou pensando nele. Amendoim.
▬ Não. Me passe o amendoim e pense no seguinte. Se entre os espermatozóides que me acompanharam, e que não chegaram ao óvulo, estava o cara que eua descobrir a cura do câncer? Hein? Hein?
▬ Certo.
▬ Mas, em vez dele, eu é que cheguei. Por acaso. Ou poderia ser uma mulher. Uma soprano de fama internacional. Em vez disso, deu eu. Veja a minha responsabilidade.
▬ Acho que você está sendo radical.
▬ Não. Imagine se, em ver do espermatozóide que se transformou no Jânio Quadros, tivesse dado outro. A história do Brasil ia ser completamente diferente! É ou não é?
▬ Mais ou menos.
▬ Pois então. Eu me sinto culpado, entende? Acho que eu deveria, sei lá. Ter feito mais da minhan vida. Em honra a eles. Eu estou representando milhões, bilhões de espermatozóides, cada um uma pessoa em potencial. E o que é que eu fiz da minha vida?
▬ E se fosse um bandido?
▬ Como?
▬ Se, em vez de você, o espermatozóide que tivesse dado certo fosse um assassino, um mau-caratér. Não quero falar dos espermatozóides do seu pai, mas num desse grupo de milhões sempre tem uma ovelha estragada. Uma maça negra. Estatisticamente falando.
▬ Você acha mesmo?
▬ Acho.
▬ E outra coisa. O que passou, passou. Não pense mais nisso.
▬ Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nome teriam?
Eduardo, Gilson, Amaury, Jéssica...
▬ Marco Antônio...
▬ Marco Antônio...Imagine, um deles podia ser o ponta-direita do Brasil em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpada?
▬ Bom, meu pai tem doze irmãos.
▬ Aí é diferente.
▬ Por quê?
▬ Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozóides, todos com o mesmo direito, só eu me criei.
Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
▬ É uísque.
▬ Não. A gratuidade das coisas.
▬ Não sei...
▬ Você está bêbado.



*Dedicado a Fabricio Reis e Yuri Gama

domingo, 23 de maio de 2010

A arte do assalto

Saio da padaria e ando rapidamente até o carro. Quero chegar cedo em casa antes passar meu filme favorito no telecine cult. Eles se aproximam quando eu abro a porta. Percebo imediatamente que não perderei apenas o filmezinho cult mas também o carro. Já estou suficientemente treinada para entrgar as chaves antes que falem qualquer coisa. Olho para os dois, mantenho a minha digníssima calma e digo:
▬ Tu-tu-do be-bem!
Sou obrigada a ir no banco ao lado. Indico o caminho que leva diretamente à periferia. Ofereço pãezinhos:
▬ Aproveitem, estão quentinhos.
Eles me olham, simpáticos. Faço tudo para que o clima seja o mais agradável possível. Tento contar uma piada, mas ninguém ri. Sou deixada num viaduto. Gentis, eles garantem que só querem o veículo para uma fuga.
Poderei encontrá-los no outro dia. Levam os pãezinhos. Quando se vão, respiro fundo. Vitória! Os ladrões ficaram satisfeitos. Nunca mais achei o carro, mas fui elogiada por todos os amigos porque me comportei bem. É uma loucura.
A rapinagem está atraindo tal número de meliantes em inicio de carreia que o asssalto é quem deve administrar o roubo.

Uma amiga minha, psicóloga, foi retirar dinheiro num caixa automático de uma avenida importante. Início de noite, local tinha movimento. Ao sair, abriu cordialmente a porta para um adolescente bem vestido que esperava. Era o assaltante . Empurrada para dentro por ele e um comparsa, foi obrigada a conduzir o assalto contra ela mesma. Ensinou os dois a usar o cartão magnético e tentou acalmá-los, porque estavam nervosos. Depois explicou que entendia a situação e não tinha nada contra o fato de ser roubada, algo tão normal atualmente. Até avisou:
▬ Escondam o revólver que a polícia tá passando.
Tornou- se a cúmplice perfeita. Discordou da idéia de irem embora à pé. M0strou onde tinha um estacionamento. Em compensação, negociou o dinheiro do taxi.
E quando a casa é invadida? Um casal que conheço foi mestre na arte de receber diante das escopetas.
▬ Querem um café enquanto meu marido abre o cofre? Ou preferem uma refeição? - ela ofereceu.
Um deles quis uísque. O marido sugeriu:
▬ Meu filho, não beba. Você vai fugir, a rua tem policiamento. É arriscado. Leve a garrafa.
O líder aceitou o palpite e pediu bifes. Ao mesmo tempo em que os dois rapazes acompanhavam o proprietário em busca de valores, a mocinha de expressão selvagem foi à cozinha com o hostess.
Depois de séculos longe das panelas, esta fez um jantar sofisticado. Serviu na mesa de jacarandá. O casal comeu junto. A certa alturam, ela comentou, charmosa:
▬ Desculpem, foi só um cardápio rápido. Se pudesse, teria feito uma receitinha francesa que vocês iam amar. Mas leva tempo. Quem sabe...
Todos se olharam. Quem sabe uma outra vez, ela quis dizer? Os da rapina ficaram constrangidos. Um deles foi delicado:
▬ Não esquenta, dona. Tá muito bão.

Despediram - se cortesmente. Só conheço um caso que terminou em violência. Foi com um amigo da esquerda radical. Ao ser travado, não só se deixou depenar com leveza como ainda quis conscientizar o gatuno:
▬ É isso aí, companheiro. Estou do seu lado, porque sei o que é a crise e do desemprego. Mas você tem que entender que a expropriação dentro de uma perspectiva mais ampla.
Levou um tapa. É raro.
Dia desses, um executivo recebeu um telefonema:
▬ Alô? Aqui é o rapaz que levou o seu carro e sua carteira.
▬ Oba! Como vai?
Tudo certo, tio. Queria apenas avisar que vou devolver seus documentos pelo correio. Olha, desculpa o contra tempo, mas sei que o seguro cobre o monza. É minha profissão. Você entende.
▬ Puxa, é claro. Boa sorte, hein?

Há algo de podre neste reino, mas não imagino sequer como resolver. Só me resta, como Hamlet, olhar para uma caveira e reclamar para fantasmas. Ou então, na próxima vez, mirar firme o safado e partir pra prática:
▬ Sinto muito, mas o senhor está fazendo tudo errado. Passa a arma. Pronto. Agora, a grana. De assaltos eu entendo mais que você!

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Cheque em xeque

O país anda tão desconfiado, mas tão desconfiado, que todos nós viramos suspeitos. Cada cheque é uma CPI particular. O vendedor, por mais amigável que tenha sido, lança um olhor de suspeita. E pergunta a primeira coisa que vem à cabeça.
- É do Rio?
- Não, de Hong Kong.
Enquanto ele decide se sorri ou me morde, atiro o cheque no balcão e fujo com as compras.
É duro falar em geral, quando nem todos são assim.
Acabo injustiçando centenas de pessoas simpáticas que já me atenderam nos balções sem me matar como uma filha de mafiosos.
Mas também sou injustiçada. Sei que a crise, a falta de ética e a corrupção escorregam sobre nossas vidas, precipitando desconfianças. O pior é que todas as exigências não adiantam nada, e se o portador do cheque estiver interessados em dar o golpe.
Pedem a carteira de identidade. Ofereço a minha , com uma linda foto em que eu apareço esbelta, com os cabelos cobrindo as orelhas de rato e uma franja sobre os óculos. Algo como uma versão década de 60 de um cachorro lulu.
Sou eu mesma, mas só os parentes sabem. A vendedora me olha, conferindo. Ou filosofando sobre a passagem do tempo, não sei.. Sorri, como se tivesse me reconhecido, o que sei ser impossível. Sorrio de volta, com ar de respeito, e até uma emoção. Serei eu mesmo?
Ai, ela compara a assinatura. Acontece que eu tenho prazer de falsificar minha própria assinatura. De raiva. Às vezes boto só um rabisco. Pois a vendedora confere e aceita.
Também pedem o telefone e o endereço. Outro dia, desabei na quitanda de uma coreana. Recém-chegada. Comprei um maço de rabanetes, um quilo de batatas e uma dúzia de bananas. Peguei o cheque. Ela estreitou os olhinhos. Expliquei que era especial. As pestanas , dois riscos irritados. Ela olhou o cheque, virado de cabeça pra baixo. Chamou um ajudante, tipo nordestino. Resmungaram entre si, em que lingua eu não sei. Ele explicou:
- Ela aceita só se a senhora virar freguês.
Quase me ajoelhei. Ia gente em casa, e aquelas batatas eram a diferença entre ser dama ou uma cafona. Prometi passar lá todos os dias os dias, quem sabe até ser sócia. O rapaz tentou soletar meu nome. Empacou o I. Quase sufocou. Cantei alegremente todas as letras. Ele pediu tudo, até o endereço da mãe. Escrevi no verso do cheque: pirulito que bate bate/Pirulito que já bateu/Quem gosta de mim é ela/ Quem gostar dela sou eu. Aceitaram. Até hoje não sei como o banco pagou.
Pode até parecer piada, mas é sofrimento. Faz pouco tempo, estive em um hipermercado de uma rede que está em todo país. Fiz o cheque. A caixa apertou um botão, acendeu uma luzinha. Explicou que precisava conferir. Esperei meia hora. Ninguém apareceu. Pedi licença, fui reclamar. A moça do balcão de atendimento rosnou:
- Não adianta reclamar.
Chamei o gerente, briguei. Demorou mais meia hora, aliás para garantir meu cheque, já chamei a polícia. Estava em um restaurante chinês, com a minha amiga. Depois de me conciliar com alguns camarõezinhos empanados, pedi a conta. Fiz o cheque, o garçom explicou:
- Não aceitamos.
- E porque não me avisam antes?
Ele me mostrou um cartaz na parede. Iludida pelo molho de ostras, não havia visto. Expliquei que não tinha dinheiro. Ele correu ao caixa. Vi um chinês velho abanando a cabeça com um leque. O garçon voltou e eu disse, claramente:
- Chame a polícia.
- O que?
- Chame a polícia. Quero pagar, vocês não querem receber. Chame.
Foi um bafafá. Um jovem veio correndo da cozinha. Pensei que ia me soterrar com um prato de sopa de tubarão, tal a fúria. Repeti o pedido, gentil: queria a policia. Aceitaram o cheque, com suspiros e nervosismos. Houve um momento em que a pareciam tentados a me transformar em uma leitoa agridoce.
Bilheteria de um show ou treatro, nem se fala. Alguns teatros grande já chegara a exigir avalista e fazer consulta telefônica para verder ingressos.
Outra ficcção é o cheque pré-datado. Há quem faça propaganda que aceita. Mas sei lá por conta do raciocínio melodramático, o governo proíbe. Todo mundo dá, mas não existe. Resultado: boa parte das vezes em que caí na história, depositaram depois. Foi o caso de uma loja de tapetes, ávida como um paxá. Liguei reclamando. Ouvi:
- Foi erro da mocinha.
- Poderiam devolver, a troco do outro cheque?
- Impossível. Já foi contabilizado.
Eu gostaria que houvesse algum adjetivo além de péssimo. Só para falar do que mais irrita. Vivi esta cena várias vezes. Entro em um banco, fico na fila. Espero, espero. Faço o cheque para pagar alguma conta. Caixa:
- O senhor tem conta neste banco?
- Não, mas...
Sou expulsa. Não aceitaram o cheque. É uma desmoralização. Se nem banco aceita, onde é que nós estamos?
Melhor vivem os fantasmas. Porque a esses, tudo se permite. Não enfrentam filas e descontam cheques até de madrugada. Não precisam de CPF nem devem ter RG. Endereço e assinatura, nem se fala.
Difícil, mesmo é estar entre os simples mortais.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A glória do desvirginador não é eterna

Amor de pica fica? Perguntei a umas meninas que conheço. Fica por um tempo, responderam de bate-ponto; foram unânimes. Então não fica; que tremenda descoberta...Uma premissa rola o abismo: atenção, machos, esqueçam, amor de pica não fica! Merecia uma pesquisa acadêmica a quantidade de equívocos impregnados nas portas dos vestiários masculinos.
Outro equívoco: a glória dos desvirginador masculino.
Só há uma primeira vez na vida de cada um ( algumas são incompletas, dada a complexidade de uma primeira vez), e todos sabem, com exatidão, com quem, onde e quando foi a primeira vez. No entanto, homens e mulheres podem fazer o que bem ao próximo e ser agentes de muitas primeiras vezes, o que é motivo de orgulho para uns. Quem já não teve um amigo que vangloriou, tipo "Fiz bem a três próximas..."
Uma mulher desvirginar um garoto não tem dificuldades e nuanças do inverso: basta ensinar o caminho, dar carinho, acalmar o taradinho e relaxar com o furor do aprendiz. Mas o homem desvirginador, bem, esse se sente o mais homem de todos, amante professor, o número um. Exigem paciência as barreiras himéticas, membrana popularmente conhecida como cabaço.
Existem himens e himens, diferentes quanto à densidade e à elasticidade: alguns rompem com pouco esforço, enquanto outros precisariam de uma cirurgia. E o homem está lá, com seu bisturi firme. procurando o local a ser perfurado, recuando na dor da parceira, investido entre trancos e beijos. Depois, sentem -se responsável pela que desvirginou. Lembra- se dela com frequência: "onde está minha cria?" Pensa em procurá-la para saber se está tudo bem, como um ginecologista de plantão. Conta para os amigos: " Aquela lá, fui eu que pus na vida..." Se acha um ser iluminado, um salvador, um líder, um messias, paizão de vida sexual alheia, o sábio.
No entanto, a edição da revistra Trip é um banho de água fria. Garotas são perguntadas a respeito das respectivas primeiras vezes. A maioria está segura em apontar que virgindade é um erro. Algums preferem o chavão " Só se deve dar para álguém que você ame..." A que diz "Tem hora certa para perder" provavelmente ainda não perdeu a sua. Mas o que enunciamos se basta na velha e boa "Cada um faz o que quer" . A estudante de artes plásticas diz que a sua primeira vez doeu. A que trabalha em um escritório de computação diz "Foi com 15 anos. Mas foi legal. Não gozei, só senti dor". Tudo parece tão banal, "Mas foi legal", incomparável com o brilho enganoso dos troféus que os homens, com muito orgulho exibem por aí. Foi a segunda revelação bombástica: o desvirginador masculino tem uma importância eventual, nada de "eterno enquanto dure"

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Seis graus de separação

- Deixa eu te perguntar uma coisa: você acha que pode se apaixonar por alguém que não conhece, ou até então nunca viu a sua vida inteira?
Eu pergunto isso por quê; eu vivo no Rio de Janeiro com quase sete milhões de pessoas e eu sempre me perguntei, quem sabe?
A pessoa sentada ao seu lado no metrô pode ser sua alma gêmea. A questão é, neste instante antes de você conhece-lo, ele é um estranho para você...e você para ele.
Estranhos. Nesta cidade, um estranho qualquer pode te inspirar. Você pode passar na frente do mesmo edifício todos os dias, e nunca imaginar que a pessoa que mora ali será sua amiga um dia. Talvez, alguém que precise desesperadamente de um amigo.
É isso que eu acho mais interessante no Rio. Tem pessoas neste momento no topo do mundo e outras no fundo do poço.
No mesmo dia, você nunca sabe quem pode quem pode conhecer. Talvez, seja alguém tentando limpar a sua a sua bagunça, tão presente quando deveria ser, ou talvez alguém vivendo a vida totalmente abandonada , alguém tentando se perder totalmente.
Mas, somos forçados a ficar juntos, diariamente e a única coisa que nos separa é a chance. Sina talvez.
Você passa pela a vida, junto com os seus sacrifícios diários, aí você pensa que está sozinho, mas não está.
Sete milhões de pessoas nesta cidade e qualquer um deles, qualquer um, a qualquer hora pode entrar na sua vida e muda-la. Pra sempre.