domingo, 6 de junho de 2010

Irmãos*

▬ De vem em quando eu penso neles.
▬ Quem?
▬ Nos espermatozóides.
▬ De vem quando você pensa que somos seus espermatozóides?
▬ Não nos meus, não. Nos do meu pai
▬ Você tá bêbado.
▬ Na noite que eu fui concebido ▬ suponho que tenha sido uma noite ▬ eu era um entre milhões de espermatozóides. Mas só eu cheguei no óvulo da minha mãe. Ou será bilhões?
▬ Acho que é óvulo mesmo.
▬ Não. Os espermatozóides. É milhões ou bilhões?
▬ Ah...não sei.
▬ Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isto é o mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóides junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
▬ É.
▬ Você acha mesmo?
▬ Acho.
▬ Poderia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
▬ Amendoim?
▬ Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?
▬ É como você diz. A gratuidade da coisa.
▬ Não, não. Isso que estou bebendo.
▬ É, ahn, uísque.
▬ Uísque. Pois não. Aí está.
▬ Ô Moacyr, vê outro aqui. O rapaz tá precisando.
▬ Um brinde!
▬ Um brinde.
▬ A eles!
▬ Quem?
▬ Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo da mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não viveram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
▬ Aos meus irmãos!
Meus irmãos, você não estava lá.
▬ Aos seus irmãos!
▬ Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
▬ Salve.
▬ Agora me diga uma coisa.
▬ Duas. Digo duas.
▬ Cada espermatozóide é uma pessoa diferente, certo?
Quer dizer. Em outras palavras. Se o outro espermatozóide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
▬ Depende.
▬ Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Poderia ser uma mulher, certo?
▬ Nõa vamos exagerar.
▬ Então, imagine o seguinte. Pense bem. Amendoim.
▬ Amendoim. Estou pensando nele. Amendoim.
▬ Não. Me passe o amendoim e pense no seguinte. Se entre os espermatozóides que me acompanharam, e que não chegaram ao óvulo, estava o cara que eua descobrir a cura do câncer? Hein? Hein?
▬ Certo.
▬ Mas, em vez dele, eu é que cheguei. Por acaso. Ou poderia ser uma mulher. Uma soprano de fama internacional. Em vez disso, deu eu. Veja a minha responsabilidade.
▬ Acho que você está sendo radical.
▬ Não. Imagine se, em ver do espermatozóide que se transformou no Jânio Quadros, tivesse dado outro. A história do Brasil ia ser completamente diferente! É ou não é?
▬ Mais ou menos.
▬ Pois então. Eu me sinto culpado, entende? Acho que eu deveria, sei lá. Ter feito mais da minhan vida. Em honra a eles. Eu estou representando milhões, bilhões de espermatozóides, cada um uma pessoa em potencial. E o que é que eu fiz da minha vida?
▬ E se fosse um bandido?
▬ Como?
▬ Se, em vez de você, o espermatozóide que tivesse dado certo fosse um assassino, um mau-caratér. Não quero falar dos espermatozóides do seu pai, mas num desse grupo de milhões sempre tem uma ovelha estragada. Uma maça negra. Estatisticamente falando.
▬ Você acha mesmo?
▬ Acho.
▬ E outra coisa. O que passou, passou. Não pense mais nisso.
▬ Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nome teriam?
Eduardo, Gilson, Amaury, Jéssica...
▬ Marco Antônio...
▬ Marco Antônio...Imagine, um deles podia ser o ponta-direita do Brasil em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpada?
▬ Bom, meu pai tem doze irmãos.
▬ Aí é diferente.
▬ Por quê?
▬ Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozóides, todos com o mesmo direito, só eu me criei.
Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
▬ É uísque.
▬ Não. A gratuidade das coisas.
▬ Não sei...
▬ Você está bêbado.



*Dedicado a Fabricio Reis e Yuri Gama

Um comentário:

Azrael disse...

São as filosofias de boteco, minha cara. Sempre sábias