terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A revolta dos tios

Estou eu parada diante de uma loja. Observo atentamente uma blusa de tecido leve: deslizará como uma cortina sobre minhas adiposidades? Ou, perversa, me transformará um bujão de gás ambulante? O manequim de vestido me convida a comprar todo o figurino do Verão. Sendo mais realista do que sou: o que eu desejo não é vestir as roupas, mas me tornar igual ao manequim de vitrine. Suspiro. Sinto – me subitamente rejuvenescida, com direito a usar vestidinho de flanela e lencinho com sapatinho de boneca. Dois garotos se aproximam de mim, sorridentes. Olham para mim. Sorrio de volta, como se fosse colega de escola. Um deles, rapidamente me atira um balde de água fria:
– Tia, que horas são?
Desabo. Mal consigo identificar os ponteiros do relógio. Tia? Fujo, com as orelhas vermelhas de frustração. Nada mais trágico do que ser chamada de tia. A não ser, é claro, por meus adoráveis sobrinhos, que preferem utilizar meu nome de batismo. Tia, francamente, é duro de ouvir. O hábito começou nas escolas maternais de vanguarda.
Lembro como as criancinhas mimosas de alguns anos atrás se sentiam felizes correndo atrás da professora gritando:
– Tia, tia!
Acontece que as tais criancinhas cresceram. Formam a mais nova geração de gatinhas e gatões, decidida a torturar a cidade inteira. Por que mestres não podiam, simplesmente, continuar a serem chamados de professores, como se o título fosse feio?
Há centenas de mulheres modernas que acordam às cinco da manhã para fazer ginástica. Trabalham o dia todo sob uma máscara de maquiagem. Dormem cedo, com um quilômetro de creme revitalizante sobre a pele. Passam o fim de semana no cabeleireiro ou sendo socadas por uma massagista. Aproveita as férias para fazer plástica. Quando pensam que estão lindamente remoçadas, são destruídas na primeira fila do cinema, como no caso de uma representante dessa esforçada geração de descasadas. Veste um fuseau que reforça suas curvas, num juvenil verde - limão. Túnica branca, larga que disfarça o culote. Demorou horas em frente ao espelho, mas parece ter saído do banho. Um garotão a observa, quando ela se aproxima do guichê. Ela corresponde, felina. Ele hesita em se aproximar com um sorriso torto:
– Tia, compra a entrada para mim?
Ela tenta sorrir, mas em um segundo sua pele parece uma pasta de flocos de milho mergulhados no leite. Haja decepção! Na minha infância, tia era solteirona, que não arrumou marido – um horror na província. Hoje não: fala – se em tio e tia com toda a naturalidade, e a gente é obrigada a agir cordialmente, como se fosse um elogio. No mínimo, as solteironas do passado, quando chamadas de tia pela criançada, atiravam baldes de água nos agressores.
Certa vez, uma amiga me disse chocada: Foi com a filha mocinha a uma loja. Segundo conta, o vendedor era o Tom Cruise do balcão. Pois a filha o chamou de tio. A vontade de abandonar a garota no meio da loja batia na sua cabeça feito um martelo e levar o vendedor para a casa. O pior de tudo é que o hábito denuncia a idade, pois só quem é realmente jovem se acostumou a tratar todo mundo desse jeito.
Há uma revolta surda fermentando. Ouvi falar de grupos que pretendem enviarem baixo – assinados às escolas maternais, que continuam se esbaldando com essa didática, sem computar as graves conseqüências sociais. Também há quem prefiro atitudes individuas desgastantes:
– Tio por quê? Não sou seu parente! ­– os ativistas respondem.
Pessoalmente, não ando tentando aderir. As palavras ainda não saem redondas da minha boca. Tentar, eu tento.
Outro dia, me atrevi a chamar de tio um bonitão que poderia ser galã de novela das oito.
Ele se vingou, verde de ódio:
– Qual foi, nem?
Já ousei com meu chefe, ao entrar na sala dele depois de uma reunião:
– Tudo legal, tio?
Quase fui demitida. Continuei insistindo. Sei que é impossível vencer a marcha das palavras, por mais irritantes que elas se tornem. Como não consigo perder o vício do café, talvez eu possa me embriagar no meu novo vocabulário. Ninguém estranha se, nos próximos dias me encontre de vestidinho de flanela, lacinho na cabeça tomando café no shopping e cumprimentando certos amigos:
– E aí tio? Tudo jóia? O verão tá uma brasa mora!

4 comentários:

Rubem Rocha disse...

Me lembra Lispector, eu acho.
Ótima. Sempre!

Unknown disse...

E aí tia, me informa as horas?

Selva Mara disse...

Carrasco tem uma crônica igual a sua. Processa ele por prágio. Eu li igualzinho no livro "O golpe do aniversariante e outras crônicas" claro que ao invés de tia ele coloca tio.
Selva estudante de Letras da PUC Minas.

Selva Mara disse...

Coisa feia prágio é crime, tudo bem que vc fez mudanças no texto de Carrasco colocando "tia" ao invéz de "tio" e "vestido" ao invés de "regata" e também não sabia que a sua amiga que te comentou algo sobre a filha dela, era leitora de Carrasco. Mas bem o que importa é que vc ler né por que tem dois textos de Carrasco no seu nome, só falta aprender fazer citação. A multa é cara e eu mesmo denuncio.