domingo, 7 de fevereiro de 2010

Cheque em xeque

O país anda tão desconfiado, mas tão desconfiado, que todos nós viramos suspeitos. Cada cheque é uma CPI particular. O vendedor, por mais amigável que tenha sido, lança um olhor de suspeita. E pergunta a primeira coisa que vem à cabeça.
- É do Rio?
- Não, de Hong Kong.
Enquanto ele decide se sorri ou me morde, atiro o cheque no balcão e fujo com as compras.
É duro falar em geral, quando nem todos são assim.
Acabo injustiçando centenas de pessoas simpáticas que já me atenderam nos balções sem me matar como uma filha de mafiosos.
Mas também sou injustiçada. Sei que a crise, a falta de ética e a corrupção escorregam sobre nossas vidas, precipitando desconfianças. O pior é que todas as exigências não adiantam nada, e se o portador do cheque estiver interessados em dar o golpe.
Pedem a carteira de identidade. Ofereço a minha , com uma linda foto em que eu apareço esbelta, com os cabelos cobrindo as orelhas de rato e uma franja sobre os óculos. Algo como uma versão década de 60 de um cachorro lulu.
Sou eu mesma, mas só os parentes sabem. A vendedora me olha, conferindo. Ou filosofando sobre a passagem do tempo, não sei.. Sorri, como se tivesse me reconhecido, o que sei ser impossível. Sorrio de volta, com ar de respeito, e até uma emoção. Serei eu mesmo?
Ai, ela compara a assinatura. Acontece que eu tenho prazer de falsificar minha própria assinatura. De raiva. Às vezes boto só um rabisco. Pois a vendedora confere e aceita.
Também pedem o telefone e o endereço. Outro dia, desabei na quitanda de uma coreana. Recém-chegada. Comprei um maço de rabanetes, um quilo de batatas e uma dúzia de bananas. Peguei o cheque. Ela estreitou os olhinhos. Expliquei que era especial. As pestanas , dois riscos irritados. Ela olhou o cheque, virado de cabeça pra baixo. Chamou um ajudante, tipo nordestino. Resmungaram entre si, em que lingua eu não sei. Ele explicou:
- Ela aceita só se a senhora virar freguês.
Quase me ajoelhei. Ia gente em casa, e aquelas batatas eram a diferença entre ser dama ou uma cafona. Prometi passar lá todos os dias os dias, quem sabe até ser sócia. O rapaz tentou soletar meu nome. Empacou o I. Quase sufocou. Cantei alegremente todas as letras. Ele pediu tudo, até o endereço da mãe. Escrevi no verso do cheque: pirulito que bate bate/Pirulito que já bateu/Quem gosta de mim é ela/ Quem gostar dela sou eu. Aceitaram. Até hoje não sei como o banco pagou.
Pode até parecer piada, mas é sofrimento. Faz pouco tempo, estive em um hipermercado de uma rede que está em todo país. Fiz o cheque. A caixa apertou um botão, acendeu uma luzinha. Explicou que precisava conferir. Esperei meia hora. Ninguém apareceu. Pedi licença, fui reclamar. A moça do balcão de atendimento rosnou:
- Não adianta reclamar.
Chamei o gerente, briguei. Demorou mais meia hora, aliás para garantir meu cheque, já chamei a polícia. Estava em um restaurante chinês, com a minha amiga. Depois de me conciliar com alguns camarõezinhos empanados, pedi a conta. Fiz o cheque, o garçom explicou:
- Não aceitamos.
- E porque não me avisam antes?
Ele me mostrou um cartaz na parede. Iludida pelo molho de ostras, não havia visto. Expliquei que não tinha dinheiro. Ele correu ao caixa. Vi um chinês velho abanando a cabeça com um leque. O garçon voltou e eu disse, claramente:
- Chame a polícia.
- O que?
- Chame a polícia. Quero pagar, vocês não querem receber. Chame.
Foi um bafafá. Um jovem veio correndo da cozinha. Pensei que ia me soterrar com um prato de sopa de tubarão, tal a fúria. Repeti o pedido, gentil: queria a policia. Aceitaram o cheque, com suspiros e nervosismos. Houve um momento em que a pareciam tentados a me transformar em uma leitoa agridoce.
Bilheteria de um show ou treatro, nem se fala. Alguns teatros grande já chegara a exigir avalista e fazer consulta telefônica para verder ingressos.
Outra ficcção é o cheque pré-datado. Há quem faça propaganda que aceita. Mas sei lá por conta do raciocínio melodramático, o governo proíbe. Todo mundo dá, mas não existe. Resultado: boa parte das vezes em que caí na história, depositaram depois. Foi o caso de uma loja de tapetes, ávida como um paxá. Liguei reclamando. Ouvi:
- Foi erro da mocinha.
- Poderiam devolver, a troco do outro cheque?
- Impossível. Já foi contabilizado.
Eu gostaria que houvesse algum adjetivo além de péssimo. Só para falar do que mais irrita. Vivi esta cena várias vezes. Entro em um banco, fico na fila. Espero, espero. Faço o cheque para pagar alguma conta. Caixa:
- O senhor tem conta neste banco?
- Não, mas...
Sou expulsa. Não aceitaram o cheque. É uma desmoralização. Se nem banco aceita, onde é que nós estamos?
Melhor vivem os fantasmas. Porque a esses, tudo se permite. Não enfrentam filas e descontam cheques até de madrugada. Não precisam de CPF nem devem ter RG. Endereço e assinatura, nem se fala.
Difícil, mesmo é estar entre os simples mortais.

2 comentários:

Unknown disse...

Atualiza isso.

Anônimo disse...

Eu acho que os mortos só sabem de uma coisa: É melhor estar vivo"
Mas se olharmos o mundo atual, a frase fica o contrario.